Pelo primeiro post que escrevi sobre as minhas histórias de terror laborais já devem ter percebido que tenho umas quantas para contar. Hoje trago-vos uma que me aconteceu não durante o trabalho, mas durante o processo de recrutamento. Felizmente para mim, guardo tudo o que é email e nunca limpo a minha inbox, pelo que encontrei todos os emails e contactos escritos que foram feitos durante este processo.
O anúncio da empresa S e os primeiros contactos
Tudo começou com um reencaminhamento de uma oferta de emprego do gabinete de integração profissional da minha antiga faculdade. Na altura, encontrava-me a fazer um estágio na Bertrand, uma experiência que valorizo muito até hoje, mas que como estava a chegar ao fim, me “obrigou” a procurar algo para fazer enquanto ainda lá estava.
E então recebi o anúncio de emprego para a empresa S.
Pediam Assistentes de Comunicação Financeira para redigir textos para os clientes dessa empresa e era necessário ter gosto pela escrita e escrever bem.
Após o envio do meu CV, carta de apresentação, etc., fui contactada telefonicamente por um dos sócios da empresa, o M.
Elogios desconfortáveis
O M. ligou-me pouco depois e fez-me aquilo que me pareceu uma pré-entrevista ao telefone. Quando cheguei a casa, umas duas horas depois, tinha exactamente três e-mails do senhor na minha caixa de correio electrónica, o que achei um pouco estranho. Quase tão estranho como me ter feito um elogio físico ao telefone (o senhor elogiou o meu sorriso – que devia ter visto na minha foto do CV ou do Linkedin – , o que, sinceramente, me deixou muito pouco à vontade). No meu entender, não há lugar para elogios físicos deste contexto, mas isso sou eu…
Nos e-mais o Sr. M. pedia-me dois textos de tema livre: um em português, outro em inglês, para testar os meus conhecimentos nestas duas línguas. Ele desfez-se em elogios e até chegou a dizer que após ler os meus textos tinha ficado com a impressão de que eu até merecia mais do que a empresa S. Não me interpretem mal, receber elogios é bom, mas os dele… não sei, não me pareciam certos. Todos eles me fazia sentir super desconfortável.
Contactos abusivos e inexplicavelmente numerosos
Durante o resto dessa semana em que enviei os dois textos, o Sr. M., não se ficando apenas pelo feedback aos mesmos, contactou comigo TODOS os dias da semana e, o que me chocou mais, foi tê-lo feito num sábado à tarde quando escreveu num e-mail que “estava com medo que a Catarina já não quisesse colaborar connosco” (sem razão nenhuma, que eu até à data não tinha dito absolutamente nada nesse sentido) e, no domingo seguinte, à noite,- já passava das 20h – quando me ligou três vezes- uma para um telemóvel, outras duas para o outro que eu tinha na altura. Obviamente que, depois do (suposto) processo de recrutamento tudo menos normal desencadeado por este senhor, recusei-me a atender o telefone, para além de ter ficado incrivelmente chateada por me estar a ligar naquele dia e àquelas horas. Se não tivéssemos falado mais depois do contacto inicial, teria atendido, mas como tal não era o caso comecei a sentir-me perseguida.
A entrevista
Na sexta-feira anterior, o Sr. M. tinha-me convocado para um encontro no qual nos iríamos conhecer pessoalmente. A ideia era encontrarmo-nos num café, ao invés de nas instalações da empresa, como até seria normal. Iria levar consigo o Sr. S, cujo cargo na empresa nem sequer mencionou, portanto, o S., podia bem ser uma pessoa qualquer.
No email em que propôs o encontro dizia o seguinte:
Tenho uma ideia – que não é original porque já a tive com (possíveis) colegas teus aqui na S.: vamos encontrar-nos fora daqui, eu, tu e um deles.
Fazemos assim: primeiro, falamos os três – principalmente tu e eu; depois, eu vou-me embora e vocês ficam os dois a falar para tu fazeres as perguntas que quiseres sobre a S. e sobre mim, claro.
Isto nem seria muito suspeito, já tive entrevistas de trabalho de cariz mais informal e em vários sítios fora das instalações da empresa: em cafés, bancos de jardim, etc., mas já nada vindo do Sr. M. me parecia normal.
Na véspera do encontro- uma segunda-feira – contei isto a uma amiga que, por sua vez- me deu o contacto de outra amiga a quem estava a acontecer exactamente o mesmo com a mesma empresa S. e com o mesmo Sr. M.
A rapariga confessou sentir o mesmo que eu- uma espécie de perseguição. No entanto, o contacto do Sr. M à amiga da minha amiga não era tão frequente, embora estivesse a produzir textos a pedido do senhor desde o dia 23 de Novembro (íamos, entretanto, a meio de Dezembro de 2010), sem nunca lhe garantirem que ficaria com o lugar. Mais tarde na nossa conversa, ela contou-me que tinha entrevista com ele no dia após a minha, também num café. Ela ainda lhe tinha perguntado se não podia ser nas instalações da empresa S., mas o Sr. M. rapidamente recusou a ideia.
Para além disto, quando eu lhe pedi que me enviasse por e-mail um exemplo dos textos que eu teria de produzir caso lá ficasse- textos sobre economia ou finanças simplificados para o público geral compreender-, para saber se estava à altura e se iria gostar do trabalho, o co-fundador/sócio da S. (o M.) disse apenas “isso não é assim tão simples”. Assim, sem mais explicações. Mas, por outro lado, era capaz de escrever e-mails bastante longos a fazer piadas ou a citar o júri dos Ídolos para me elogiar.
Após tudo o que a rapariga me contou, decidi não ir à entrevista e não me arrependo nada.
Fiz uma denúncia
Desde o início fiquei com má impressão desta empresa que age assim; onde o tratamento aos candidatos é demasiado íntimo, demasiado tudo. Tratavam-nos por tu, a fazer piadas como se nos conhecessem há anos, ligavam e mandavam e-mails repetidamente até que respondessemos, enfim…
Os empregadores e recrutadores parecem esquecer-se de que as entrevistas e processos de recrutamento funcionam para os dois lados: para eles verem se os candidatos servem para as vagas em aberto nas suas empresas e nós, os candidatos, para apurarmos se gostaríamos de lá trabalhar. E se há coisa que apurei com esta experiência foi que não, que não queria trabalhar com eles. Se uma pessoa que ainda não é minha chefe me liga vezes sem conta e, ainda por cima, num domingo à noite e ainda nem trabalhamos juntos, só podia imaginar como seria a minha vida se trabalhássemos… Mas, claro, isso tudo seria até aceitável se ele não tivesse sido tão creepy.
É verdade: antes de decidir se ia ou não à entrevista fiz, como costumo fazer, uma pesquisa na internet sobre a empresa S. Neste caso, não só não encontrei nada sobre esta para além do próprio website e página do Linkedin do co-fundador M. (ou seja, zero menções à empresa noutros sites e imprensa), como reparei que, no site deles, só existiam contactos pessoais do senhor: o número de telemóvel e e-mail de onde me enviava e-mails até aos feriados e fins-de-semana. Estranho…
No final, e após ter recusado ir à entrevista, escrevi um enorme email (tipo este post) ao gabinete de integração profissional da minha faculdade a expor detalhadamente o que se tinha passado e rematei com:
Penso ter feito bem em escrever-vos a contar a minha experiência, pois, se voltar a acontecer com outra pessoa, saberão que não foi a primeira vez. E realmente o meu caso não foi o primeiro.
Levo muito a sério a procura de emprego e vejo as entrevistas como oportunidades de mostrar o meu valor e o meu profissionalismo, portanto, logicamente exijo o mesmo respeito dos empregadores que eu lhes mostro.
Faria tudo igual
Olhando para trás, sinto um enorme orgulho na Catarina de 23 anos, precária, mas com os pés assentes na terra e recusando aceitar situações que a faziam sentir-se incrivelmente desconfortável. No fundo, a lição é mesmo esta: exigir o mesmo respeito que mostramos às pessoas. Nesta altura eu tinha um futuro incerto à minha frente, com muito poucos trabalhos na minha área, mas mesmo assim recusei este por me sentir desta forma e sinto imenso orgulho por isso.
Arrependo-me zero desta decisão.
Sabem, antes de escrever este post, ainda fui ler todos os emails trocados entre mim e o M. para tentar ver, agora com mais sete anos de experiência, se eu tinha exagerado (eu sei que às vezes exagero) e se ele tinha sido assim tão creepy, mas rapidamente dei toda a razão à eu de há quase sete anos atrás. Sim, ele foi assim tão creepy e fez-me sentir insegura (no sentido de segurança pessoal mesmo, não de auto-estima) e faria tudo igual hoje em dia.
E agora é a minha vez de perguntar: se passaram por algo semelhante? O que fizeram? Contem-me as vossas histórias de terror laborais também!
16 Comments
Joana Sousa
24/02/2017 at 10:00 AMCaramba. Para além de a própria empresa “cheirar a esturro”, mesmo que fosse legítima seria provavelmente a coisa mais desconfortável de sempre. Isto assumindo que não aconteceria nada pior durante a entrevista…nem é bom pensar nisso. Mas o facto é que há pessoas a tirar proveito da instabilidade de carreira que infelizmente é tão frequente e isso tem que ser combatido, como tu o fazes. Obrigada por isso!
Outra coisa, claramente as faculdades deveriam ter mais atenção às divulgações que fazem. Há uns tempos atrás recebi um e-mail do gabinete da minha faculdade a promover uma oferta de um part-time para eng. civil a receber 300€/mês…por 8h/dia. É óbvio que os alunos caíram em cima da faculdade lol
joan of july
01/03/2017 at 12:56 PMSim, até podia nem ter mal nenhum, mas eu ia sempre sentir-me desconfortável e ansiosa.
What? Estás a falar a sério? 300€/mês e 8h por dia um part-time? Caraças…
Eu fiz um email enorme a contar o que sucedeu ao gabinete de integração social da minha faculdade na altura. Acho que fiz bem também, só gostava de saber se eles falaram com a empresa ou não…
Rita
24/02/2017 at 10:01 AMEpá, depois de ler estas tuas histórias acho que ninguém tem histórias para contar! Admiro a tua coragem porque eras novas, eras mais “inocente” e mesmo assim bateste o pé numa situação que claramente era de abuso de privacidade. É uma história super creepy e fico assustada como aconteceu a alguém e como acontece a várias pessoas, ainda infelizmente!
joan of july
01/03/2017 at 12:57 PMLá creepy é ela! Mas sim, a coisa era tão má que os meus sensores de alarme dispararam todos, mesmo sendo mais nova e ingénua. É que não dava para ignorar mesmo.
Ana Rita
24/02/2017 at 1:26 PMBem que situação tão estranha, e a tua irá sempre chegou a ir à Entrevista?
Ana Rita
24/02/2017 at 1:27 PMQueria dizer amiga em vez de irá, maldito corretor
joan of july
01/03/2017 at 12:58 PMhahaha eu percebi 😉
joan of july
01/03/2017 at 12:57 PMSe a minha amiga foi à entrevista? Por acaso não me lembro, mas creio que não!
Inês
24/02/2017 at 2:24 PMÉ de valorizar a tua atitude face a este problema. Confesso que teria bastante receio em ir à entrevista e provavelmente recusaria. A experiência mais parecida que tive – que me fez recusar uma oportunidade de emprego – foi precisamente vinda de um recrutador que me tratou por ‘tu’, também manteve um contacto mais intimo do que o desejável, quis saber o meu signo e explorar o meu ‘estado civil’. Não achei nada profissional e apropriado e quando fui novamente contactada, optei por recusar.
joan of july
01/03/2017 at 12:59 PMObrigada, Inês. 🙂
Uau… isso que contas é extremamente desconfortável e nada profissional! Fizeste lindamente em recusar. Parabéns pela atitude. 🙂
Sara Trigo
24/02/2017 at 4:21 PMA maturidade vê-se sobretudo em decisões e atitudes como esta. Boa, Catarina!
Há uns anos trabalhei para um senhor que desde o início me parecia muito exagerado: vocabulário excessivo (a maioria mal aplicada), tratamentos hiper-cordiais, auto-elogios constantes, mas não era incorreto, pelo que nada disso interferia no meu trabalho.
Até que um dia interferiu. Estávamos num centro de estudos, éramos só eu, ele e os miúdos, quando ouço um berreiro no hall do centro. Era ele a discutir agressivamente com um antigo colaborador que o deixara de ser pouco tempo antes.
Aparentemente o senhor era extremamente incorreto, tentava várias falcatruas e quando o colaborador foi embora, para trabalhar num sítio concorrente, o senhor começou a fazer-lhe perseguições e a ameaçá-lo com processos cíveis, que era a arma constante dele.
Ouvi falar em polícia e fiquei paralisada, com uma cambada de miúdos enfiados comigo numa pequena sala.
Assim que a cena acabou fui embora e disse que não queria mais trabalhar com ele.
Ligou-me e mandou-me mensagens a pedir que fosse testemunha dele (logo eu que não tinha visto nada) e ainda tive algumas situações chatas porque ele não largava o assunto. E o centro de estudos era mesmo por baixo da minha casa.
Uns meses mais tarde vi-o numa revista cor de rosa: o filho dele era participante num famoso reality show e ele ia para as galas ameaçar toda a gente com processos cíveis.
joan of july
01/03/2017 at 1:02 PMObrigada, Sara! 😀
Caraças, que história… Não fazia ideia. Agora fiquei com imensa curiosidade, adorava saber quem é o senhor. Tenho uma suspeita, por acaso. 😛
Mariana
26/02/2017 at 7:57 PMSituações deste género infelizmente ouvem-se todos os dias e nem sempre a maturidade e experiência permite ter a reacção correcta (se é que ela existe). Nesta história que descreveste, em concreto, tiveste uma boa atitude face aos acontecimentos e por isso, na minha opinião, deves mesmo sentir-te orgulhosa!
joan of july
01/03/2017 at 1:05 PMObrigada, Mariana. 🙂 Sim, até sinto. Pelo menos não sinto nenhum arrependimento em relação a esta situação. 😀
Marta Filipa Costa
28/02/2017 at 1:46 PMQue situação chata! Acho que fizeste muito bem em não ter avançado para a entrevista!
Nunca me aconteceu nada do gênero. A situação mais chata foi um trabalho de verão. Em que depois da entrevista, fui trabalhar em ‘teste’ mesmo nesse dia (13 horas?) e nunca me senti confortável no trabalho, com as pessoas ou sei lá (para além de que não compensava as horas/salário) e acabei por me vir embora no final do dia. Não me arrependo. Acho que teria sido um mês super estranho!
joan of july
01/03/2017 at 3:15 PMFizeste bem em ir embora, Marta. Eu sou da opinião que se nos sentimos em algum momento desconfortáveis sem aparentemente haver um motivo para isso, algo se passa. Pode não ser logo visível, mas o nosso cérebro parece aperceber-se de situações potencialmente perigosas/más, mas pode não as processar logo.