Podia abrir este texto com aquela desculpa recorrente de quem passa muito tempo sem publicar, mas preferi começar com a conclusão:
No dia em que a curiosidade me abandonar, enterrem-me viva, que morta já estarei.
Pensei nisto sobre mim ontem, porque fiquei feliz ao constatar que ainda possuo uma curiosidade quase infantil acerca de muita coisa. Suspeito que a Natureza será, para sempre, uma dessas coisas.
Ontem, terça-feira – o meu segundo e último dia de folga – dei por mim encarregue de vários afazeres fora de casa. Coisa rara hoje em dia, mas que me fez pensar que, em vez de me apressar, ia levar o meu tempo, e levar o meu tempo envolveu uma paragem inusitada para ir ver o rio.
A cidade de Torres Vedras, bem perto de onde moro, é atravessada pelo rio Sizandro, que se afigura, aqui, como uma língua lamacenta pouco impressionante, mais frequentemente suja do que não. Mas ontem foi exceção. Nunca, nos três anos que aqui moro, o vi com tanto caudal e com uma corrente tão apressada. Parecia prestes a transborbar, captou o meu interesse. Quase todos os corpos de água captam o meu interesse, para ser sincera, mas ontem, mais ainda.
Debati-me comigo mesma sobre o dilema que se desenhou instantaneamente: continuar o side-quest e ir à Story Owl embrulhar encomendas para, depois, as levar aos correios, ou estacionar e ir investigar o rio?
Optei pela segunda, mais depressa do que o que seria de esperar; lugares livres na rua onde estava não abundam e tomei aquele como um segundo sinal do Universo em como devia, sim, ir ao rio.
O rio chamou e eu ouvi.
Investiguei-o o melhor que pude e comecei a filmá-lo para mostrar lá em casa.
E eis que o impensável aconteceu:
Uma cabeça de animal que não reconheci à primeira, surgiu, rodopiando sobre si mesma naquela água lamacenta e mais abundante do que nunca. Inicialmente ainda achei que fosse um pato – há muitos naquela zona do rio -, mas não… era uma criatura diferente… não, não podia ser… mas era! Era uma lontra! A palavra não me veio logo à cabeça; o nome do animal não estava pronto a sair, devido a nunca ter visto nenhum em estado selvagem. As únicas ocasiões em que vi lontras foram mesmo no Oceanário.
Mas ali estava ela, a girar, a rodopiar, a morder coisinhas que o rio trouxe com aquela corrente toda. Espero que tenham sido só coisas boas, nada de lixo.
Filmei-a sem querer, porque já estava a filmar o rio. Oh, que sortuda me senti! Não só por ter visto uma lontra, logo ali, num centro urbando, de todos os sítios, mas por ter ouvido a minha intuição.
Deixa-me falar-te brevemente sobre ela, esta intuição natural que sempre tive e que nunca deixei de ter: nunca me deixou ficar mal, seja para o bem ou para mal.
Em 2023, aconteceu-me um episódio semelhante. Encontrava-me na ilha de Skye, na Escócia, envolta em bruma e mito, como não podia deixar de ser. À semelhança de ontem, encontrava-me rara e temporariamente sozinha num par de horas à tarde e, para aproveitar as últimas horas de luz, fui explorar a zona à volta do alojamento. Aquela vozinha a que comumente chamo intuição, disse-me para seguir por um caminho alagado para além de um portão de madeira que uma placa rogava que mantivesse fechado por causa… bem, já não me lembro porquê, mas estava relacionado com animais.

Ilha de Skye, 4 de março 2023
Segui um pouco por esse caminho, até onde a terra firme e o limite das galochas o permitiam, e parei imediatamente antes de ficar com os pés alagados, sempre de olhos postos no mar – oh, aquele mar de histórias de sereias, de Kelpies, de Selkies e de demandas de uma mão-cheia de heróis. Era como se estivesse a ser guiada por alguém que queria muito que eu visse alguma coisa.
Olhei, olhei e olhei durante muito tempo. Montanhas por trás, águas agitadas, rochas fustigadas por águas bravias e geladas. Tudo de bom. Mas… afinal não eram só pequenas ondas a mover-se. Após observar com olhos de quem quer ver para além do óbvio, vi-as: um grupo de focas (ou seriam realmente selkies), a “brincar” na água, junto às rochas, tão escuras que se confundiam com as próprias rochas.

(não se percebe pela foto, mas foi ali que as vi! Tenho vídeo, mas não deu para colocar aqui).

(só mais uma da paisagem da Ilha de Skye só porque sim e só porque sinto saudades da Escócia todos os dias da minha vida, antes e depois de ambas as vezes que a visitei).
E tal como na história recente do avistamento da lontra, nunca tinha visto focas ao vivo, no seu habitat.
E senti-me uma sortuda de ambas as vezes.
Que delícia é a Mãe Natureza e que delicioso é deixar-me invadir por quem me guia até estes fenómenos.
É como se parte de mim vivesse no presente e no mundo moderno e, a outra parte, nunca tivesse sido perturbada do seu estado mais primordial pelo ruído das selvas de betão criadas pelo Homem. Soube nos últimos anos de infância que quereria viver assim e não desiludi aquela criança.
Mais do que nunca, sinto que ela teria orgulho em mim.

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