As memórias que as redes sociais insistem em trazer ao de cima podem ser tramadas. Umas vezes trazem-nos uma melancolia terrível, por outras uma introspeção até bem-vinda. Ontem apoderou-se de mim um misto de ambas. É que ontem fez dois anos que publiquei este texto, no qual declarei que tinha casa nova, o apartamento que aluguei depois do meu divórcio, em 2020. Vou contar aqui um pouco dessa história.
Para começar, vou dar-vos um curto background da minha relação com casas. Apesar de saber que o conceito de casa pode ser puramente emocional e afetivo, não vou negar que o sítio onde vivo tem um profundo impacto em mim, no meu bem-estar, no meu dia-a-dia e escolhas diárias. Afeta tudo em mim.
O lar, para além do lugar físico, é um conjunto de materiais, artefactos, rotinas e memórias que construímos, sozinhos ou com outra(s) pessoa(s). No seu aspecto físico, um lar é um lugar composto por paredes e divisões que, só de olharmos para elas vazias, conseguimos encher de memórias que lá vivemos com quem por lá passou.
Antes disso, já tinha decidido alugar um apartamento só para mim e estava quase a assinar o contrato.
Os pensamentos que me levaram a ir em frente na decisão de alugar apartamento sozinha foram:
- eu e o meu namorado estávamos juntos há pouquíssimo tempo – na verdade, acho que ainda não éramos oficialmente um casal quando fui para casa dele viver temporariamente, por isso não queria estar a colocar-me numa situação demasiado nova e que não sabia se seria séria e que podia não resultar. Não o conhecia assim tão bem ainda, nem tampouco tinha partilhado casa com ele. Viver com alguém é, para mim, algo sério;
- achei que, já que me tinha apaixonado tão rapidamente sem me ter dado tempo “suficiente” (o que quer que isso seja) para estar verdadeiramente sozinha, talvez não fosse má ideia viver sozinha, permitir-me viver segundo e apenas as minhas próprias vontades, horários e caprichos;
- sofri de algum julgamento e pressão externos para o fazer, confesso, embora fosse algo que também desejasse; de um lado, por pessoas bem intencionadas e que se preocupam comigo, por outro, porque tinha que tirar as minhas coisas todas da minha ex-casa para dar espaço a uma nova pessoa.
Uns dias após a assinatura do divórcio (estávamos nos inícios de Março de 2020), foi decretada a pandemia e o confinamento obrigatório. Tomei a decisão de aceitar o convite para ir temporariamente para casa do meu namorado.
Posso dizer-vos que me custou mais sair da casa onde vivia até 2020 (desde 2016) do que o divórcio em si. Pode parecer frieza, mas não é. Simplesmente, na altura em que me divorciei a relação já estava mais que ultrapassada, mas o resto não. Fiquei literalmente sem chão fixo na cidade que escolhi para me acolher tantos anos antes. Como já vos contei aqui, estive uns meses no Porto no pós-separação a fazer fisioterapia (e a curar o coração) após o meu acidente, mas quando voltei a Lisboa tive ainda que passar umas semanas na minha ex-casa. Foi algo emocionalmente brutal para mim porque:
- por um lado, sentia-me em casa, conhecia-lhe todos os cantos, reconhecia todos os materiais, tintas e decorações escolhidos por mim (quase todos, à data);
- por outro, sabia que tinha que sair dali e tentei praticar o desapego ainda lá;
- tinha lá os meus gatinhos e sabia que ia ficar sem eles ainda durante mais uns tempos (para além daqueles quase dois meses que passei no Porto), pelo menos enquanto não encontrasse um lugar definitivo. Esta custou-me mesmo muito.
Entre o tempo que estive em casa do meu namorado e a altura em que realmente fui à minha ex-casa fazer a mudança definitiva, passou-se um mês e qualquer coisa. Estávamos no pico da pandemia, em que a circulação entre concelhos era proibida e em que não havia muita gente disponível a trabalhar nas mudanças. Foi complicado.
Entretanto, a mudança aconteceu no dia 26 de Abril de 2020 e eu só fui oficialmente morar para o novo apartamento no início de Junho. Até lá, desenvolvi rotinas e hábitos de vida com o meu namorado que estavam a ser absolutamente deliciosos. Viver juntos parecia-me tão natural, tão fluído…. tão bom.
Mas meti na cabeça que não queria uma situação de desigualdade como tive no passado, em que a casa pertencia à outra pessoa e, quando as coisas chegaram ao fim, quem teve que sair e de refazer a sua vida, remobilar uma casa e investir em novos eletrodomésticos e coisas fui eu. Parecendo que não, é logo uma chapada na cara e na vida financeira, que deixa uma pessoa bastante fragilizada. Ou seja, depois de uma separação ou divórcio, não é apenas a parte afetiva que sai danificada e, por isso, tomei a decisão de nunca mais deixar que isso me acontecesse e vou manter isto até ao fim dos meus dias, a não ser que realmente não tenha mesmo outra opção. Enquanto tiver, vou insistir nisto.
E assim foi. Mudei-me para um simpático T2 na Pontinha, que decorei com simplicidade e até com alguns destroços da minha vida anterior. Desempacotar todas as minhas coisas tanto foi libertador e empoderador, como meio triste.
Sabem aqueles filmes americanos em que a pessoa é despedida de uma empresa e abandona o edifício com um caixote cheio dos seus pertences em braços? Era mais ou menos assim que me sentia, mas com um centelha de entusiasmo pela nova vida que me esperava.
O apartamento em si era bem fofinho e tinha a maior cozinha que eu já tinha tido em algum sítio onde vivera (com exceção da residência de estudantes enquanto aluna universitária, mas essa cozinha era comunitária, claro).
A minha família e o meu namorado ajudaram-me a montar móveis e a arrumar algumas coisas, o resto fui fazendo, distribuindo pelo espaço lá de casa e colocando ao meu gosto. Olhando para trás, sinto que tinha muito e pouco ao mesmo tempo. Não sei bem explicar.
Sobre viver sozinha
No passado, partilhei espaço com muita gente. Durante a licenciatura, vivi numa residência de estudantes com gente de todos os cantos do mundo; muitas culturas, muita agitação, muita festa, imprevisibilidade e uma enorme aprendizagem de partilha. Durante o mestrado e até 2012, partilhei apartamento com várias raparigas, inicialmente amigas, depois outras pessoas, estudantes de Erasmus, trabalhadoras, etc. Mais uma profunda aprendizagem que levei na bagagem. Entretanto, fiquei uns meses a morar sozinha nessa casa, quando todas saíram e a senhoria queria vender a casa, então não valia a pena arranjar mais pessoas para partilhar casa e fiquei a pagar o mesmo.
Entre 2012 e 2019 vivi com o meu ex, primeiro num apartamento, depois noutro. Ao todo, morei em três apartamentos no Lumiar.
Em 2020, fui então viver temporariamente com o meu namorado para a Tapada das Mercês (Sintra) e, depois, para a Pontinha. Mal sabia eu que não seria a minha última mudança de casa nesse ano.
Voltando ao apartamento da Pontinha.
Lembro-me de me sentir invadida por uma excitação interior por saber que ia voltar a viver sozinha, pois lembrava-me do quão feliz fui a viver só com a minha gatinha Zelda no passado. Será que seria igualmente feliz desta vez?
Spoiler alert: chorei na primeira noite. O entusiasmo inicial deu origem a um vazio assim que percebi que estava realmente sozinha e já não estava habituada. Mas tudo bem, achei normal. Era uma (re)habituação normalíssima.
Os dias foram passando e fui realmente começando a apreciar os meus momentos a sós, lá no meu apartamento. A verdade é que, na prática, nem passava muitas noites sozinha e dividia o meu tempo entre a minha casa e a do meu namorado, sendo que até passávamos várias noites na casa um do outro.
Em Julho desse ano, comprei o meu carro motivada pela distância entre as nossas casas e uma vontade gigante de evitar andar de transportes públicos no auge da pandemia.
Posso deixar tudo para trás, mas nunca os meus amores felinos, os meus bebés. Pedi-lhes desculpa inúmeras vezes por tê-los obrigado a mudar de casa tantas vezes e num tão curto espaço de tempo, mas estávamos juntos. Nada nos vai separar e vamos juntos a todo o lado, por mais voltas que a vida dê. Nunca seria capaz de me separar deles.
Long story short, muito pouco tempo depois de ir morar para a Pontinha, eu e ele decidimos abandonar os nossos apartamentos alugados e alugar um juntos, nós e os nossos quatro gatos. E, assim, no final de 2020 acabámos aqui, de onde vos escrevo hoje; numa moradia em Cascais, com jardim e terraço, onde somos muito felizes e os nossos gatos passaram de gatos de apartamento a gatos também de exterior; onde se deleitam com banhos de sol e onde se maravilham com as ervinhas do jardim e com os pássaros que voam por cima das suas cabeças quase em desafio.
De uma forma muito resumida, é isto.
Se eu gostei de morar na Pontinha? Não gostei. Gostava do apartamento até, tirando o facto de ser horrivelmente caro para uma pessoa a ganhar o que ganhava na altura (e mesmo agora), mais contas sozinha e tudo o mais.
Tenho-o na minha casa atual também e adoro-o. Irá comigo para onde for morar.
Para nós, foi a decisão correta virmos morar juntos: já tínhamos feito o test drive antes, gostamos muito um do outro, damo-nos bem e, no sentido mais prático da coisa, poupamos dinheiro a dividir contas e a não gastar tanto em combustível em visitas um ao outro. Como um quase tudo na minha vida, há uma parte romântica e outra menos, mas a lógica também é muito bem-vinda. 🙂
Então, mas porque é que não gostei de viver na Pontinha?
Espero não ser levada a mal, mas é só a minha opinião pessoal: não achei que fosse um sítio bonito; faltava-me verde. Lembro-me de ter saído de casa à noite, uma vez, e de ter ido explorar muitas ruas a pé em busca de recantos mais bonitinhos, mas não encontrei. E o Google confirmou: não havia ali, a uma distância a pé, nenhum espaço verde.
Por outro lado, foi também uma aprendizagem: agora tenho a certeza que, onde quer que more, preciso de verde ali pertinho.
Quanto à minha casinha atual, também vai ter um post só para ela em breve.
Espero que tenham gostado deste relato pessoal, mas que foi e é uma parte tão importante da minha história, embora só tenha vivido nesse apartamento durante uns curtos três meses. Ainda assim, não os esqueço e guardo na memória a romantização dos dias e noites que lá passei, sozinha e acompanhada.
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